Opinião: The Handmaid's Tale, de Margaret Atwood
The Handmaid's Tale, de Margaret Atwood, é uma distopia (é, também, muitas vezes reconhecido como um livro de ficção especulativa) e foca-se nas experiências de Offred como Serva (Handmaid, na versão original) numa sociedade que se rege segundo uma visão distorcida da tradição bíblica e onde os homens são os únicos capazes de governar. As mulheres apenas servem para cuidarem da casa, para desempenharem o papel de esposas ou para gerarem filhos (que é o caso das Servas), possuindo pouquíssimos "direitos", que acabam por não ser direitos propriamente ditos, até porque só existem para não porem em causa a existência da mulher como "fábrica de pessoas".Ao longo do romance, vemos, também, a vida de Offred antes da imposição de um governo totalmente masculino e conservador, bem como os seus pensamentos e sentimentos relativamente ao seu papel como Serva e à sua vida como mulher. Mas, por vezes, sentimos que Offred conta a sua história como se essa sociedade já não existisse. O que terá acontecido? Será que mudou para melhor?
Estamos perante um romance intenso e extremamente importante na nossa atualidade. A nossa sociedade está cada vez mais marcada pela ignorância e, num sentido muito negativo, pela diferença. Aqueles que detêm privilégios e poderes não são capazes de olharem para aqueles que são diferentes e de os verem como iguais, levando a situações de ódio, de preconceito e de desigualdade. Neste romance, os que detêm os tais privilégios e poderes são homens velhos, muito religiosos e machistas. São homens que deturpam as palavras da Bíblia (não quer dizer que a Bíblia seja inteiramente "inocente") para atingirem o seu próprio fim, o de evitar o fim da capacidade de reprodução humana. São homens que não veem as mulheres como seres humanos, valorizando apenas o sistema reprodutor delas. Criam leis contra a educação das mulheres, formam hierarquias que colocam as mulheres umas contra as outras e elaboram regras que fazem as mulheres sentirem vergonha da sua sexualidade e da sua sensualidade. As mulheres não têm poder sobre os seus próprios corpos e os homens não são culpados pelas suas atitudes, consideradas "naturais", mas as mulheres são. Elas é que têm que proteger a sua dignidade, eles não.
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Imagens da adaptação televisiva de The Handmaid's Tale. |
Não acham tudo isto familiar? Hoje em dia, os direitos das mulheres (principalmente, quanto ao que podem fazer em relação ao seu corpo ou à sua vida sexual) são atacados por argumentos religiosos. Mantém-se, ainda, a ideia de que as mulheres são demasiado sentimentais e, portanto, pouco racionais para terem uma opinião objetiva. Muitas vezes, as mulheres lutam umas contra as outras porque revistas, concursos, filmes, etc., assim o exigem para que haja "entretenimento" e lucro. Quantas vezes vemos uma mulher, vítima de assédio sexual ou de violação, a ser culpada por ter vestido uma determinada roupa, por ter bebido demasiado ou por estar fora de casa até tarde? Quantas vezes vemos uma mulher a ser chamada de "p*ta" por mostrar um pouco de pele ou por ser muito ativa sexualmente? Quantas vezes não vemos uma mulher a ser criticada por não querer ser mãe ou não querer ter uma vida de casada?
Este romance faz-nos colocar todas estas perguntas e faz-nos pensar seriamente em como as relações de poder têm de ser redefinidas. É urgente haver manifestações, é urgente atuarmos. É urgente sermos humanos.
Como podem ver, é um livro carregado de ideias feministas, embora a autora nunca seja muito clara quando lhe perguntam se considera o seu romance feminista. Ainda assim, sim, tem muitas ideias feministas. Com todas as desigualdades e injustiças mencionadas anteriormente, e que também foram expostas no livro, vê-se a defesa da mulher como o ser humano que é. O feminismo não é mostrar que as mulheres são anjos e que são superiores aos homens. É mostrar que são tão humanas como os homens. Temos imperfeições, somos seres racionais, merecemos direitos. Mostra que temos o poder da escolha. Podemos escolher ser mães, podemos escolher não ser mães. Podemos escolher casar, podemos escolher não casar. Podemos escolher ser donas de casa, podemos escolher não ser donas de casa. Podemos escolher ocupar um lugar importante na sociedade, podemos escolher não ocupar um lugar importante na sociedade.
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Elisabeth Moss como Serva Offred na adaptação televisiva. A hierarquia é marcada pelas roupas diferentes. As Servas vestem vermelho e branco. |
Ao lerem este romance, não podem dizer que a escritora tinha como intenção declarar que todos os homens são machistas e ignorantes. Na realidade, há exemplos de homens que reconhecem o seu privilégio e querem ajudar a protagonista, colocando, até, a sua vida em risco. Aliás, deve ser isso que Atwood quer como resultado: levar os homens a entenderem os privilégios que têm e que devem educar-se e saber ouvir para que, assim, consigamos resolver problemas que afetam toda a gente.
Apesar de não ter sido escrito de acordo com o ramo feminista que hoje é mais defendido, o feminismo interseccional, o livro mostra, também, como esta distopia, por exemplo, prejudica as lésbicas, vistas como "traidoras de género", ou seja, como são mulheres, deveriam querer homens nas suas vidas, quer sexual, quer emocionalmente. Isto não é tão profundamente retratado como o caso de Offred, que, na sua vida anterior, era casada com um homem e chegou a ter uma filha dele, mas parece que a autora tinha consciência da forma como a nossa sociedade vê a comunidade LGBTQIA+. Ainda assim, a mensagem peca por valorizar mais os problemas que uma mulher heterossexual enfrenta em comparação às pessoas que se identificam de outra forma relativamente ao seu género e à sua sexualidade.
Um outro defeito na mensagem é a ausência de "people of color", isto é, de "pessoas de cor", de etnias e raças diferentes. Por exemplo, as "mulheres brancas" têm, de facto, mais privilégios do que as "mulheres de cor" simplesmente devido à cor da pele e às ideias a ela associadas. No entanto, nada disto é explorado neste romance, pois nem há menção de "pessoas de cor", nem em cargos de poder, nem a ocupar outros papéis nesta sociedade distópica.
Depois de falar da mensagem de The Handmaid's Tale, está na altura de falar do livro quanto às personagens e à escrita. Offred é, sem dúvida alguma, uma das personagens "cinzentas" mais interessantes que já conheci. "Cinzenta" em relação à sua moral e à sua forma de pensar. A autora, de facto, criou pessoas. Offred é uma mulher que, antes de ser Serva, tinha o seu emprego e se casou com um homem que, na realidade, já era casado quando se conheceram e se envolveram. É um livro que defende os direitos das mulheres, mas não quer dizer que as mulheres sejam totalmente boas, e isso só vem reforçar o facto de as mulheres, realmente, serem seres humanos. Uma outra personagem interessante é o "Commander", ou seja, o homem com o qual Offred é forçada a ter relações sexuais para que possa conceber uma criança. Ele tem atitudes muito opostas, na medida em que ele vê a dor de Offred e quer tornar mais suave (o que nunca seria possível) a vida dela, mas não reconhece que as mulheres vivem segundo uma hierarquia injusta e cruel.
Quanto à escrita, é aí que retiro alguns pontos ao romance, pois demorei a habituar-me ao estilo da autora. O romance é feito de flashbacks e de momentos do (suposto) presente de Offred, mas não foi isso que achei estranho. Simplesmente fiquei surpreendida por o seu estilo ser muito marcado pela descrição e por um certo caráter poético. Apesar disso, acabei por gostar da escrita depois das primeiras cem páginas.
Em conclusão, The Handmaid's Tale é surpreendente e poderoso. É uma grande arma contra a ignorância e um grande aliado na luta contra os problemas de género. É útil para começar discussões importantes sobre grandes temas, como a importância do feminismo e o papel das minorias e a forma como são tratadas. É revoltante e chocante. Mas, afinal de contas, o que seria a arte sem a sua capacidade de chocar?
Classificação: 4/5 estrelas.
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Depois de falar da mensagem de The Handmaid's Tale, está na altura de falar do livro quanto às personagens e à escrita. Offred é, sem dúvida alguma, uma das personagens "cinzentas" mais interessantes que já conheci. "Cinzenta" em relação à sua moral e à sua forma de pensar. A autora, de facto, criou pessoas. Offred é uma mulher que, antes de ser Serva, tinha o seu emprego e se casou com um homem que, na realidade, já era casado quando se conheceram e se envolveram. É um livro que defende os direitos das mulheres, mas não quer dizer que as mulheres sejam totalmente boas, e isso só vem reforçar o facto de as mulheres, realmente, serem seres humanos. Uma outra personagem interessante é o "Commander", ou seja, o homem com o qual Offred é forçada a ter relações sexuais para que possa conceber uma criança. Ele tem atitudes muito opostas, na medida em que ele vê a dor de Offred e quer tornar mais suave (o que nunca seria possível) a vida dela, mas não reconhece que as mulheres vivem segundo uma hierarquia injusta e cruel.
Quanto à escrita, é aí que retiro alguns pontos ao romance, pois demorei a habituar-me ao estilo da autora. O romance é feito de flashbacks e de momentos do (suposto) presente de Offred, mas não foi isso que achei estranho. Simplesmente fiquei surpreendida por o seu estilo ser muito marcado pela descrição e por um certo caráter poético. Apesar disso, acabei por gostar da escrita depois das primeiras cem páginas.
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Joseph Fiennes como Commander Fred na adaptação televisiva. |
Em conclusão, The Handmaid's Tale é surpreendente e poderoso. É uma grande arma contra a ignorância e um grande aliado na luta contra os problemas de género. É útil para começar discussões importantes sobre grandes temas, como a importância do feminismo e o papel das minorias e a forma como são tratadas. É revoltante e chocante. Mas, afinal de contas, o que seria a arte sem a sua capacidade de chocar?
Classificação: 4/5 estrelas.