Na comunidade americana de escritores de YA, principalmente se seguirmos esses escritores nas redes sociais, vemos, constantemente, conversas sobre a importância da representatividade na arte. Por muitos anos, a norma era (e, enfim, ainda é, de certa forma) a pessoa branca, mais propriamente o homem branco. A área dos estudos literários estava repleta de homens brancos. As editoras praticamente pertenciam a homens brancos ou lá trabalhavam quase apenas homens brancos. Publicava-se quase apenas homens brancos. As mulheres brancas também tinham problemas em serem representadas apenas por serem mulheres, mas não nos podemos esquecer que as pessoas pertencentes a minorias raciais, religiosas e sexuais são as que mais sofriam e sofrem. Uma pessoa negra mais dificilmente publica um livro. Uma pessoa homossexual mais dificilmente se vê corretamente representado num livro. Uma pessoa muçulmana praticamente só vê estereótipos relacionados com o terrorismo e o extremismo religioso. Num país tão diversificado quanto os EUA, mas também racista, xenófobo, homofóbico, misógino, os artistas sentem que devem atuar. Por isso, têm essas mesmas conversas sobre a diversidade nas redes sociais e praticam o que dizem e ensinam na sua arte.
Infográfico de 2018 sobre a diversidade nos livros infantis em 2018.
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Um dos ensaios mais conhecidos e respeitados sobre este tema é o “Mirrors, Windows, and Sliding Glass Doors”, da Dr.ª Rudine Sims Bishop. Publicado em 1990, o objetivo deste ensaio era mostrar a importância dos livros diversificados para leitores jovens, livros que refletissem a natureza multicultural do mundo onde eles vivem. A autora acrescenta que os jovens deveriam ver-se nos livros e que deveriam aprender como são as vidas dos outros através da leitura. O seguinte parágrafo, que é o primeiro do ensaio, é o mais lembrado e, de facto, é um excelente resumo daquilo que a literatura precisa ser hoje em dia:
“Books are sometimes windows, offering views of worlds that may be real or imagined, familiar or strange. These windows are also sliding glass doors, and readers have only to walk through in imagination to become part of whatever world has been created or recreated by the author. When lighting conditions are just right, however, a window can also be a mirror. Literature transforms human experience and reflects it back to us, and in that reflection we can see our own lives and experiences as part of the larger human experience. Reading, then, becomes a means of self-affirmation, and readers often seek their mirrors in books.” (Bishop, 2015: 1)
Bishop desenvolve e fala acerca das crianças não-brancas, que, durante anos, tentaram encontrar livros sobre as suas experiências. Queriam, na realidade, o que os leitores brancos tinham: espelhos de si mesmos. Ao não se verem em lado nenhum, ou ao verem imagens negativas e estereotipadas delas próprias, essas crianças interiorizavam a ideia de que a sociedade não quer saber delas ou que não têm nenhum valor como indivíduos integrados num grupo onde a norma é a pessoa branca. É também mau para os leitores brancos não verem o quão diversificado o mundo é. Livros que representam outros costumes e vivências são importantes para que a pessoa branca entenda que vive num mundo multicultural e que deve formar ligações com todos e respeitar toda a gente. Apesar de predominarem na literatura por estarem fortemente presentes nela, os leitores brancos perdem ao não lerem histórias sobre pessoas negras, latinas e asiáticas. As pessoas heterossexuais poderiam aprender imenso com livros cujos protagonistas são pessoas da comunidade LGBTQIA+. Ainda assim, as duas grandes funções da literatura são "educare" e "delectare", ou seja, ensinar e dar prazer. Estas histórias também podem ser fonte de prazer para os que são considerados leitores pertencentes à norma. Não nos podemos esquecer que, sim, há um grande sentido pedagógico nos livros cujas personagens e vivências não seguem o status quo. Contudo, estes livros não são manuais escolares. São também arte, entretenimento e talento.
Nos últimos parágrafos, Bishop adota um tom realista, dizendo que muitos escritores de literatura infantil idealizam o livro como aquele que irá mudar radicalmente a vida de uma criança. Ela acredita nesse tipo de poder, mas é importante lembrar que a literatura “no matter how powerful, has its limits. […] it won’t stop people from attacking each other because of our racial diferences; it won’t stamp out the scourge of drugs. It could, however, help us understand each other better […]” (Bishop, 2015, 2). Não se pode esquecer que, no fim, o poder da decisão, a vontade de se ser melhor está nas mãos das pessoas e da sociedade. A culpa não será do livro se ele não conseguiu mostrar o mundo e como todos devem respeitar as diferenças. O importante é reconhecer que é possível usar o livro como o utensílio para a construção de um mundo melhor.
A Dr.ª Rudine Sims Bishop recebeu o ALSC Children's Literature Lecture Award no ano passado.
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Tendo esta perspetiva em mente, nos EUA, foram criadas organizações que lutam pela representatividade na literatura YA. É o caso da We Need Diverse Books. Esta organização não governamental pretende levar até às crianças e aos jovens livros com uma grande diversidade de personagens. Têm como objetivo realizar mudanças na indústria editorial para que possam produzir e promover livros que refletem e honram as vidas de todos os jovens. Lutam por livros sobre a comunidade LGBTQIA+, pessoas nativas, pessoas não-brancas, diversidade de género, pessoas com deficiências (quer físicas, quer mentais, como a depressão, a ansiedade, etc.) e minorias étnicas, religiosas e culturais. A ideia do We Need Diverse Books começou com uma hashtag criada durante uma conversa sobre diversidade entre Ellen Oh, a co-fundadora, presidente e CEO de WNDB, e Malinda Lo. Ao usarem a hashtag #WeNeedDiverseBooks, partilharam, no Twitter, a sua frustração quanto à falta de diversidade na literatura infantil e YA depois de verem uma conferência literária onde os convidados eram somente homens brancos. Nas redes sociais, afirmaram o mesmo que Bishop escreveu no seu ensaio. Disseram que as crianças que fazem parte das minorias, ao não encontrarem livros sobre elas próprias, iriam crescer com uma baixa autoestima e sem darem valor a si mesmas como indivíduos e seres sociais. As crianças brancas também podem sofrer com a ausência de livros diversificados porque poderão distorcer o mundo à sua volta. É essencial as crianças aprenderem através da riqueza da cultura. Acrescentaram que os currículos escolares, isto é, as listas de leituras planificadas para os estudantes, não refletem as vidas de todos os estudantes. Consequentemente, os alunos perdem o interesse pela leitura e poderão criar noções erradas acerca da literatura, achando que não há lugares para eles se apenas lerem obras de homens velhos brancos cujo “background” é a cultura europeia e que já faleceram há muitos anos.
Em pleno século XXI, é estranho a maior parte das editoras ainda não lutar por mais diversidade no mundo editorial e, consequentemente, no mundo literário. A literatura não é apenas escrita e lida por pessoas brancas, heterossexuais, com um fundo cultural ocidental. Há todo um leque variado em termos linguísticos, culturais, raciais, étnicos, religiosos, sexuais que merece ser representado nos livros. Vivemos numa época de globalização em que é cada vez mais importante educar as pessoas. A ficção pode ajudar nessa luta e o exemplo disso reside nos livros YA nos EUA. Quer através de histórias contemporâneas realistas, quer através da ficção científica e da ficção fantástica, é possível incluir e dar valor aos indivíduos que não fazem parte da norma branca e masculina cis. O YA é a prova de que a diversidade e a representatividade quebram tabus e que as próprias editoras ganham com isso. Não só há um público sedento por histórias que são reflexos de si próprios e portas para realidades diferentes, como também se vê que as editoras têm o poder de influenciar a sociedade e encaminhá-la para uma via melhor.
Termino este terceiro capítulo com um gráfico de 2019 que reflete a diversidade na indústria literária dos EUA. Se lá é assim, só poderemos imaginar como será em Portugal, onde não há dados nem sobre a diversidade nos livros que publicam, nem sobre as pessoas que fazem parte do mundo editorial. Que eu saiba, claro.
O que acham deste terceiro capítulo sobre Young Adult?
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